Os malditos… benditos sejam! Dentre os tantos músicos relegados ao ostracismo no universo da música brasileira, Jards Macalé é um dos que ocupam lugar cativo na minha prateleira especial para frascos amaldiçoados. A fragrância exalada pela sua música é a essência dos bons sons. Taí uma das maiores sacanagens já vistas com artistas da MPB em todos os tempos, já que seu talento é subestimado e incompreendido até os dias de hoje…
Carioca, nascido em 1943, Jards Anet da Silva ganhou o apelido que seria incorporado ao nome ainda moleque, época em que maltratava a bola nos jogos de futebol com os amigos. Maldito por natureza, jogava tão mal que ganhou a alcunha do pior jogador do Botafogo da época: Macalé! Pronto… era a senha estratégica pra definir aquele que iria, com prazer, desafinar o coro dos contentes.
Da infância nos morros da Tijuca até a adolescência em Ipanema, Macalé sempre esteve rodeado de músicos, a começar pela própria família e pelos vizinhos famosos (Vicente Celestino era um deles). Foi nesse período que iniciou seu aprendizado musical: saraus familiares, idas à Rádio Nacional, trabalhos com a Orquestra Tabajara… Aprendeu a ler música e se alimentou de sambas, maracatus, frevos, choros e serestas.
Entre 1959 e 1969, desenvolveu e aprimorou seu trabalho de músico e instrumentista. Formou conjuntos musicais e tocou jazz, seresta e samba-canção. Estreou como arranjador e letrista e viu duas de suas primeiras composições serem gravadas por vozes femininas do quilate de Elizeth Cardoso e Nara Leão. Conheceu Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Capinam, Maria Bethânia, Gal Costa… Mais do que acumular cultura musical, estava assistindo de perto o desenvolvimento do tropicalismo. Tímido e meio deslocado, sua participação no movimento nunca foi na linha de frente, se restringindo a discussões domésticas e outras amenidades…
Na verdade, Macalé sempre rejeitou essa postura tropicalista. No auge do movimento, preferiu se afastar e se aprofundar nos estudos musicais, aprendendo piano, violoncelo e orquestrações e aguçando o trato com o violão e seu trabalho autoral. Nesse ínterim, sua verve lisérgica absorveu a onda psicodélica promovida pelos Beatles, Jimi Hendrix e grupos de rock da ensolarada Califórnia dos anos 60.
Em 1969, tomado por essa influência, se apresenta no IV Festival Internacional da Canção ao lado dos Brazões, interpretando “Gotham City”, paródia às histórias em quadrinhos e clássica parceria com Capinam. “Aos quinze anos eu nasci em Gotham City / E era um céu alaranjado em Gotham City / Caçavam bruxas no telhado em Gotham City / No dia da independência nacional / Cuidado! Há um morcego na porta principal” , dizia a letra, cutucando o regime militar e a ditadura que se estabelecia no País. Impregnado de psicodelia e ousadia, foi incompreendido pela platéia e vaiado em uníssono. A partir daí, o rótulo de “maldito” o acompanharia para sempre. Para comprovar a tese, no mesmo ano gravou um compacto duplo intitulado Só Morto. Mal distribuído e pessimamente mixado, foi estrondoso fracasso. Era a sina se manifestando mais uma vez…
Mesmo com a nuvem negra da maldição rondando sua cabeça, prosseguiu realizando trabalhos em trilhas de filmes do Cinema Novo e destacando-se como compositor, arranjador e diretor musical em shows e discos de artistas nacionais. É dessa fase o espetáculo Gal a Todo Vapor que virou disco duplo de Gal Costa em 1971 e jogou “Vapor Barato” (composição sua em parceria com Waly Sailormoon) nas rodas de sucesso da nação hippie.
No começo dos anos 70, chegou a se mudar para Londres, onde Caetano Veloso estava exilado, para fazer o trabalho de arranjos no disco Transa, tocando inclusive violão e guitarra. No final das contas, outra decepção: álbum na praça e seu nome não constava nem nos créditos do disco. Era a maldição rondando Macalé tal qual um urubu sobrevoa uma carniça…
De volta ao Brasil, o afastamento de Caetano foi inevitável e até hoje o assunto rende polêmicas e respostas atravessadas de ambos. À partir daí, alguns novos shows bastaram para que Macalé percebesse que já era hora de ser o intérprete de suas próprias canções. Foi quando propôs a Guilherme Araújo a gravação de um elepê. Carregando o fardo de maldito, era hora de escancarar toda sua carga melancólica e existencial em vinil. Obra prima à vista…
Waly Salomão ou Waly Sailormoon (1944-2003)
GAL COSTA / ZECA BALEIRO – VAPOR BARATO